Dia 09/03/00 - Gail

Gail se recostou na cadeira, abrindo um grande bocejo e se espreguiçando enquanto olhava mais uma vez para a grande tela brilhante.

"Está ficando bom, mas por hoje chega" - pensou. "Posso fazer um trabalho melhor amanhã, quando estiver mais descansada. Paul vai comer meu cérebro se eu não fizer essa parte exatamente do jeito que ele recomendou".

Salvou o trabalho, fechou os programas abertos e desligou o computador, não sem antes desligar as caixinhas de som. Fungou baixinho, enquanto caminhava até a cozinha e preparava um chá de limão com mel - "Droga de gripe...".

Bebericou devagar, voltando para a sala. Pegou o jornal e se sentou numa poltrona grande, de aparência velha mas convidativa. Leu a notícia outra vez, fazendo um registro mental de tudo o que parecia relevante.

"Fantasia bizarra... estranho. O próprio ataque em si soa bastante esquisito e mal explicado." - passou os olhos novamente, procurando pelo nome da vítima que havia sobrevivido. - "Pode ser um começo."

Terminou de tomar a xícara de chá, pôs o jornal sobre a mesa e terminou de se preparar para dormir. Não era difícil andar pelo quarto iluminado pela luz da TV. Deitou na cama e passou o braço por cima do corpo quente e agradavelmente familiar, pegando o controle e desligando o aparelho.

- Amanhã a gente vê com calma - respondeu, sorrindo tanto pelo jeito quase sonâmbulo dele, quanto por alegria. Ele ainda estava um tantinho acordado, esperando por ela, mesmo sendo tão tarde. Depois replicou num tom zombeteiro, mas feliz - Sei, a única programação era essa Gail bobona aqui desligar, Jake bobão.

Quando ele se virou, se aconchegou no abraço dele para dormir. Era o melhor lugar do mundo para se estar. O mais quentinho também.

- Boa noite, amor - falou com ternura, dando-lhe um beijo leve nos lábios. Fechou os olhos e logo dormiu.

Respirando fundo e virando para o lado, Gail tentava fazer de conta que a luz do sol não invadia o quarto pouco a pouco. Finalmente abriu os olhos, olhando de relance o aposento vazio, para logo depois ouvir a voz bem-humorada de Jake.

- Já vou! - gritou, meio sonolenta, sentando de pernas cruzadas na cama e esfregando os olhos.
Espreguiçou-se e abriu um enorme bocejo, depois passou a mão pelos cabelos compridos, de um curioso loiro acizentado e bocejou mais uma vez. Reunindo coragem, levantou-se da cama e foi praticamente cambaleando até o banheiro. Saiu de lá com o rosto ainda meio molhado pela água gelada.

- Bom dia - disse preguiçosamente, sorrindo um sorriso sonolento enquanto se aproximava do homem bonito de cabelos escuros e pele pálida em frente ao fogão. Deu-lhe um beijo e depois se recostou de leve nas costas dele, ainda meio dormindo. Seu nariz parecia estar funcionando perfeitamente de novo, já que podia sentir tanto o cheiro gostoso da margarina derretendo, quanto do perfume da loção pós-barba do namorado.

- Cheiro boom - falou. Depois riu de si mesma, com os pensamentos ainda um tanto embaralhados, sem saber de qual cheiro falava afinal, ou se era dos dois. Ficou ainda alguns segundos recostada preguiçosamente, com os olhos fechados e um sorriso bobo, apreciando o momento e o olfato recém-readquirido. Reunindo coragem outra vez, deu um beijo rápido na nuca de Jake e foi ajudar a pôr a mesa.

- Hm, hoje eu vou ter que fazer turno extra lá na redação, não sei que horas chego aqui. - Jake disse, equilibrando a torrada na boca enquanto colocava café no copo preenchido com alguns dedos de leite - Mas eu vou ver se acho algo da Comodore lá, dependendo te envio a tarde, ok?

- Tudo bem - assentiu, tranqüila. - Tenta descobrir algo mais sobre a mulher que sobreviveu, não tinha muita coisa na notícia de ontem. Com alguma sorte o Paul me libera mais cedo, posso começar a investigar alguma coisa.

Mordeu um pedaço da torrada e tomou um gole generoso do café com leite. Aos poucos ia se sentindo mais desperta.

- Ah, e o que você quer comer hoje à noite? O jantar é por minha conta, posso fazer alguma coisa especial - deu uma piscadinha e um sorriso maroto tempo o suficiente para ele perceber o trocadilho, para logo depois fazer a cara mais inocente do mundo. Não conseguiu fingir por muito tempo, soltando uma risada alta e contagiante pouco depois - Mo, você fica lindinho vermelho desse jeito. Mas sério, quero preparar algo gostoso para você - disse, entre risadas.

Continuaram conversando mais um tempo. Quando foram decidir quem lavava as louças no jo-ken-pô, ficou cantarolando uma música irritante e fazendo caretas. Era óbvio o quanto alguns anos de tranqüila felicidade haviam transformado a garota. Quem não conhecesse a história nem imaginaria a quantidade de tragédias.

- Hey! Não vale!! - olhou inconformada para a segunda derrota do melhor de três. - Mais uma se quiser provar sua inocência! As probabilidades estão a meu favor... - resmungou, fingindo mais braveza do que realmente sentia. Ele já havia preparado o café da manhã, não se importava muito de colaborar limpando a bagunça.

Acabou perdendo outra vez. Resmungou um pouco mais, mas depois deu de ombros e foi retirando os pratos, copos e talheres da mesa, os utensílios do fogão, colocando tudo na pia e começando a limpeza. Brigou um pouco com ele por vir ajudá-la.

- Você vai se atrasar, bobão, eu tava só implicando com você, não fiquei brava de verdade! Xô, xô! - e foi assim que a guerra de água começou.


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Oi Paul! - cumprimentou, bem-humorada. - Ah é, por um momento achei que eu ia ser a próxima campeã nas olimpíadas, mas meu momento de glória já passou - brincou. - Valeu pela preocupação - Colocou a bolsa sobre a cadeira de trabalho e começou a tirar as coisas mais importantes. Encontrou a pasta com os DVDs e se lembrou: - Ah é, dei uma boa adiantada nas páginas 73-74, mas falta terminar alguns detalhes. Vou te mandando pra você dar uma olhada, tudo bem?

Sentou e começou a trabalhar firme, o olhar fixo na tela, concentrado. Às vezes ficava longos períodos olhando do roteiro para a tela em branco, sem fazer nada em especial até que de repente parecia ser acometida por um surto de criatividade e produzia uma página quase finalizada em poucos minutos. O resto da equipe estranhara no começo, mas agora todos já haviam se acostumado com o jeito da garota. Qual era o problema se ela era realmente boa no que fazia?

Abriu a caixa de emails assim que teve uma folga. Clicou na mensagem de Jake e leu rapidamente o conteúdo, os olhos correndo pela tela. Abriu os anexos e checou os dados cuidadosamente, mandando imprimir o que fosse mais relevante. Quando terminou, digitou uma resposta:

"Oi amor! Bem melhor sim. E por aí, tá tudo bem? ^^-

Dei uma boa olhada nas informações que você mandou e acho que já tenho algumas idéias. Se der, dou um pulo na Comodore ainda hoje para dar uma olhada no local. Talvez não encontre nada relevante, mas quem sabe? Depois vou tentar conversar com a pobre coitada da moça. E não se preocupe comigo, sei me cuidar. ;)

E acho que é melhor não envolver o jornal nisso... principalmente com ela tão assustada.

Bom, a noite a gente conversa sobre tudo! Te amo!"

Clicou no botão enviar e esperou a confirmação. Guardou as folhas impressas no bolso do casaco de tactel quando Paul lhe gritou que podia ir embora. Gritou de volta que tudo bem, checou alguns emails sem muita importância e abriu o google maps para se certificar de como chegar na rua Comodore e de lá no endereço da vítima. Memorizou o caminho e desligou o computador pelo resto do dia. Juntou suas coisas, se certificando que não estava esquecendo nada dessa vez, passou a alça da bolsa pelo pescoço e deu um tchau coletivo antes de sair pela porta do escritório e pegar o elevador.

Enquanto descia, olhou no relógio e calculou mais ou menos quanto tempo tinha para cuidar de tudo e ainda voltar para casa e preparar o jantar. Depois ficou pensando na abordagem correta para lidar com a moça.

"Preciso ganhar a confiança dela" - pensou, saindo finalmente para a rua.

Gail estacionou o Grand Cherokee preto numa duas ruas que ligavam a Howlett à Comodore. Saiu do veículo dando uma rápida e discreta olhada nos arredores, marcando alguns rostos suspeitos e cantos escuros, e conferiu pela última vez o papel com os dados da mulher antes guardá-lo novamente.

"Rachel, certo" - pensou. - "Espero que funcione."

Ignorou os comentários dos homens do outro prédio e aproveitou a saída de um dos moradores para segurar a porta e entrar no número 683. Subiu as escadas com calma, revendo o plano. Parou no corredor vazio e tirou um espelho de bolso da mochila. Rapidamente, os calmos olhos cinzentos se tornaram castanhos e um pouco mais redondos e maiores. O cabelo mudou para um castanho cor de mel que caía até os ombros e surgiram algumas sardas simpáticas no rosto. Afinou um pouco os lábios, arredondou um pouco mais o queixo e modificou o nariz apenas o suficiente para que combinasse com o conjunto. Olhou para o espelho e deu um sorriso simpático. Deu um último retoque, acrescentando alguma rugas e se deu por satisfeita. Até aí seu plano ia bem.

Depois deu uma olhada nas próprias roupas: botas, calça jeans escura, blusa branca de manga comprida e um casaco cinza-azulado de tactel por cima. Rapidamente transformou tudo numa roupa social feminina.

Conferiu pela última vez o conjunto e tirou a bolsa das costas. Procurou o celular e o desligou. Depois segurou a bolsa da maneira que seguraria uma maleta e respirou fundo. Tudo pronto. Subiu os últimos degraus para o segundo andar, parou em frente ao 202 e tocou a campainha.

Aguardou pacientemente enquanto a mulher abria a porta.

- Rachel Shephard? - esperou pela confirmação e disse - Boa tarde, sou a agente Sonia Young do FBI - retirou a insígnia do bolso do terno e mostrou-a para a jovem à sua frente. A outra mão segurava uma maleta de couro preto.

- E-entre, por favor... - Ela disse, meio relutante ao sair da frente da porta para te dar passagem. - Me perdoe a bagunça aqui, eu acabei de chegar e me trocar... - O relógio acusando 5:47 na mesa fazia sentido com o relato - Quer algo para beber?

- Não, obrigada. Estou bem - respondeu ao entrar ao mesmo tempo em que guardava o distintivo. - E não ligo para bagunças também - falou procurando ser simpática.

"Nossa, como ela está assustada. A coisa deve ter sido mesmo feia" - pensou.

Gail se sentou numa cadeira indicada pela dona da casa, colocando a maleta no chão. Aguardou em silêncio ela se sentar também, olhando o apartamento discretamente enquanto ela não o fazia. Enquanto Rachel estava longe, tentou identificar à distância a qual estabelecimento o uniforme pertencia.

- Bem, senhorita Shepard - começou, quando ela finalmente se aquietou e o silêncio já estava desconfortável demais, - estou aqui para conversar com você sobre o ocorrido na Rua Comodore - fez uma rápida pausa para estudar a expressão no rosto dela e continuou - O FBI tem motivos para crer que não foi um assalto comum e eu gostaria de ouvir o seu relato com todos os detalhes possíveis, mesmo que pareçam absurdos.

"Agora... empatia. Não é tão difícil, coitada."

- Eu entendo que você está bastante amedrontada pelo o que aconteceu e que deve ser extremamente desconfortável repetir sua história mais uma vez, mas só assim poderemos pegar quem quer que esteve naquele beco aquela noite. Então, por favor, me conte.

Durante todo o diálogo, a agente Sonia Young mantinha um olhar sincero, uma voz firme, mas suave, e uma postura respeitosa.

- Perguntar diversas vezes para passar um pente fino na informação e ver se eu não vou me confundir com os detalhes não é? - Ela disse, te poupando uma explicação para o procedimento e se convencendo sozinha que você realmente é quem diz ser. - Muito bem, eu irei repetir os fatos mais uma vez, senhorita Young. E será a última que irei reviver isso, avise aos seus companheiros de trabalho.

- Na verdade não, senhorita Shepard – Gail replicou num tom firme, mas gentil – não estou aqui para verificar se a senhora cometeu erros em seu relato. Apenas considero mais confiável no meu trabalho conversar com as pessoas envolvidas do que ler relatórios a respeito. Além disso, - acrescentou – falar outra vez sobre o acontecido pode lhe ajudar a lembrar de alguma informação importante que passou despercebida na primeira vez.

“Nossa...” – pensou consigo, olhando os gestos e ouvindo o tom de voz da moça – “O que é isso tudo, transtorno de stress pós-traumático?” – Entretanto continuou ouvindo o relato com um ar compreensivo, sem trair os próprios pensamentos, acenando com a cabeça nos momentos certos.

“Um assaltante foi pego por uma espécie de gosma e depois apareceu um terceiro ser misterioso... dando ordens. Que tipo de ordens?” – antes que pudesse pensar um pouco mais sobre o assunto, uma frase chamou a atenção de Gail.

- Você deveria interrogar o punk que apareceu em uma das primeiras fotos do incidente. Já identificaram ele?

- Não, ainda não. Estamos trabalhando nisso – respondeu imediatamente, buscando manter o ar impassível enquanto engolia a própria surpresa e fazia uma pequena anotação mental.

“Jake deve conseguir acesso a essa foto, preciso falar com ele depois.”

- Desculpe, senhorita Shepard, – recomeçou, escolhendo cuidadosamente as palavras, sem querer pressionar demais a pobre mulher – não quero pressioná-la ou aumentar sua aflição, mas preciso que me fale um pouco mais sobre os estranhos seres que viu. Me ajudaria muito se pudesse descrevê-los com todos os detalhes de que se lembra e me contar também o que ouviu o segundo ser dizer para a gosma.

- Alguma ordem para parar, ficar longe, eu não sei... - Ela não fez o mínimo esforço para disfarçar o quanto as suas perguntas são perturbadoras. Se levantou, andando até o canto da sala que servia como cozinha - Com licença, eu preciso de um cop...

"Isso é interessante, sinal de que esse tal ser talvez fosse uma boa pessoa... parece não querer que essa gosma faça mal a alguém" - concluiu. - "Legal, quem será?" - pensou, tentando se lembrar de algum mutante na cidade que poderia se encaixar na característica "homem fantasiado" ou ao menos alguém que tivesse aparência estranha.

De uma forma rápida e súbita, as pernas de Rachel tremeram e ela caiu, tentando se segurar em algo no caminho e batendo a lateral do corpo no chão com força.

- Caramba!! - disse Gail, perdendo totalmente a compostura ao ver a mulher caindo. Saltou da poltrona no ato e correu para acudir ela.

- Rachel? Rachel, você está bem? Rachel? - virou ela de barriga pra cima e tentou sentir pulso e respiração.

- Ai meu Deus - ficou de pé, com a mão na testa e ar levemente desesperado olhando para a mulher caída. - Droga, olha o que eu fiz! E se for aquela doença bizarra que a pessoa desmaia e morre em algumas horas?? Droga, preciso levar ela no hospital, nenhuma ambulância vai vir correndo para salvar alguém no Fosso! - Gail falava rápido e baixinho consigo mesma, numa espécie de sussurro gritado. Olhou para a mulher de novo e disse, como se fizesse alguma diferença: - Rachel, vou buscar meu carro e já volto para te pegar!

Parando apenas para pegar o molho de chaves da dona do apartamento e a própria bolsa, a garota saiu praticamente voando porta afora, pulando vários degraus da escada para chegar mais rápido. Saindo do prédio, se controlou um pouco e se limitou a andar depressa até o carro. Quando chegou, destravou o alarme e praticamente saltou no banco, jogando a bolsa no chão em frente ao assento do passageiro ao seu lado, fechando a porta e dirigindo com impaciência no limite de velocidade até o número 683.

Parou o veículo, fechou a porta com pressa e acionou o alarme de novo, colocando a chave no bolso do casaco e tirando o molho de chaves pertencente à Rachel. Olhou rapidamente a marca inscrita na fechadura da porta de entrada do prédio e procurou uma chave com a mesma marca no molho, logo abrindo e entrando outra vez. Subiu os degraus de dois em dois, ofegando um pouco.

Quando chegou em frente ao 202, Gail colocou a chave no buraco de fechadura externo e escancarou a porta. Caminhando a passos rápidos pelo apartamento, pegou a bolsa de Rachel e pendurou no próprio pescoço, torcendo para que os documentos dela estivessem ali. Em seguida, usou toda a força que tinha para pegar a mulher nos braços, do jeito que um recém-casado faria com a noiva na lua de mel. Imediatamente depois, quem olhasse para a cena chocante estaria vendo nada mais que uma moça de cabelos castanhos, vestida de um jeito um pouco formal demais, carregando com os dois braços uma grande e pesada mala preta de tecido, com quase um metro de comprimento e alças demasiadamente pequenas. Puxando parte da porta com o pé e esticando a mão tudo o que podia depois, Gail trancou a porta e foi descendo as escadas com cuidado até a saída.

Gail esperou se afastar um pouco com os carros para finalmente respirar aliviada. Não tinha sido tão difícil, afinal. Quando já estava longe o bastante para se considerar em segurança, fez o carro que a seguia com discrição, já sem a sirene, desaparecer na primeira oportunidade conveniente e continuou seguindo o mais rápido possível para o hospital, checando Rachel a cada semáforo vermelho em que era forçada a parar.

Chegando no hospital, correu lá dentro e pediu ajuda, dizendo que tinha uma mulher em estado grave dentro do seu carro. Usou seus poderes pra disfarçar a placa - se prevenir nunca era demais - e levou consigo a maleta e a bolsa de Rachel.

Ficou inconformada com a falta de atitude da equipe e da mulher e até começou a discutir um pouco, mas logo viu que não daria em nada e se conformou em ir preenchendo a ficha o mais rápido que podia com sua própria caneta. Abriu a bolsa de Rachel para conferir os documentos e foi preenchendo o que era de suma importância. Quanto aos seus dados, escreveu Sonia Young e foi simplesmente inventando o resto. Escrevia tudo em letra de forma.

Quando terminou, se apressou até o balcão e entregou o formulário para a recepcionista.

- Agora, por favor, moça, ela precisa ser atendida!